“No devir, não há passado nem futuro, nem mesmo presente,não há história. No devir, trata-se antes de involuir: não é nem regressar, nem progredir. Devir, é devir cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, devir cada vez mais deserto, e por isso mesmo povoado” (DELEUZE, G. & PARNET, C.: Diálogos, 1988, p.14)
Minha história com o cinema é longa, remonta à infância, quando histórias em imagens de personagens encantados me fascinavam. Impossível esquecer a primeira vez que fui ao cinema sem os meus pais. Eu devia ter uns nove anos, fui com uma amiga e a mãe dela nos deixou e foi nos buscar na porta do cinema (bons tempos em que a cidade de Santos tinha cinemas de rua e não nos shoppings). O filme era Jurassic Park, hoje, nada de especial ou um grande filme, mas na época uma experiência incrível...aquela sala imensa, escura e aquela tela branca que de repente se transformou em puro encantamento do olhar... gritos, mãos nos olhos...êxtase.
Passado muito tempo, no período da faculdade, me encantei com a Nouvelle Vague francesa...poesia em movimento! Foi a partir daí que comecei a estudar sobre cinema... linguagem, escolas, cineastas, análises ... mergulho. Porém, somente em 2005, ainda na faculdade, o cinema me proporcionou algo que até então eu não havia experimentado: sentir a imagem no corpo. Só nesse momento eu entendi o porquê de gritos e lágrimas e risos e arrepios e tantas outras sensações corporais frente a determinados filmes. Alguns filmes proporcionam uma satisfação tão plena que atingem diretamente o corpo, filmes que são compreendidos e sentidos não apenas pelo intelecto, mas através do corpo, porque surge uma identificação tão intensa que o corpo vive... um devir, sem futuro, sem presente, sem história, apenas povoado de encontros. O filme que me despertou esses sentimentos foi Bodas de Sangue, de Carlos Saura.
Embora os filmes de dança de Saura sejam considerados por muitos críticos e teóricos a parte menos significativa de sua produção, eles produziram em mim um efeito jamais imaginado: DANÇAR! Quando assisti Bodas de Sangue senti o corpo gritar pelo flamenco, era aquilo que eu queria fazer para alimentar meu espírito, para expressar minhas dores e alegrias...eu queria expressá-las pelo corpo. Fascínio...encontro!
Passei a estudar flamenco e também não abandonei o cinema, afinal, foi a partir dele que encontrei os sentidos que meu corpo podiam ter. Com o passar do tempo, esses dois estudos paralelos e ao mesmo tempo cruzados me levaram à elaboração de uma pesquisa que os encontrou. Começou a me intrigar a forma como Saura contava uma história no cinema através, exclusivamente, da dança, sem diálogos, sem cenas externas, sem cenários que remetessem diretamente à história contada.
Bodas de Sangue me proporcionou transformações e criações e conquistas e encontros...me fez perceber a intensidade dos gestos, os sentidos e significados que o corpo é capaz de produzir... me fez (e faz) vivenciar o devir-bailarina e o devir-estudante e o devir-artista e o devir-espectadora e...e...e...e... me fez estar entre as coisas, entre as imagens, entre os gestos, entre a técnica e a intuição, entre o corpo e o espírito.
(continua ...)